Roma: Retrato de Uma Infância

08/02/2019 - POSTADO POR EM Filmes

Em dezembro passado, estreou na Netflix o longa metragem que promete desafiar forte todos os concorrentes ao prêmio máximo do cinema, o Oscar. Trata-se de “Roma”, dirigido por Alfonso Cuarón, que por sinal já venceu a categoria de Melhor Direção e, por extensão, mais seis outras técnicas com “Gravidade” (2013).

O filme disputa a estatueta de ouro nas seguintes indicações: Melhor Filme, Melhor Atriz para Yalitza Aparicio, Melhor Atriz Coadjuvante para Marina de Tavira, Melhor Diretor, Melhor Filme Estrangeiro para o México, Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte, Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição de Som. Se vencer a premiação máxima, será a primeira vez que um indicado a Melhor Filme Estrangeiro alcança o mérito. Apenas cinco demais títulos já estiveram nessa iminência, em 90 anos desde que o Oscar foi primeiro celebrado.

Alfonso Cuarón é bem conhecido entre os jovens potterheads como o responsável pelo olhar extremamente cuidadoso de um grande favorito da saga do bruxo: “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004). Tradicionalmente, porém, Cuarón tinha como seus dois maiores projetos a produção mexicana “E Sua Mãe Também” (2001) e o britânico-americano “Filhos da Esperança” (2006). Com “Roma”, porém, somos capazes de conhecer como nunca a história do próprio cineasta, que escreveu uma semi autobiografia sob o ponto de vista de uma mulher.

Jornada da heroína

“Roma” acompanha a trajetória de Cleo (Aparicio), uma jovem empregada doméstica que trabalha em uma casa de classe média alta onde vivem esposa, marido, quatro filhos, outra empregada, Adela (Nancy Garcia), além do cão, Borras. Nos intervalos do trabalho, Cleo leva uma vida de pequenos prazeres. Ela se diverte com Adela pela cidade e em uma dessas saídas conhece Fermín (Jorge Antonio Guerrero), um rapaz atraente que acaba por engravidá-la.

A partir daí começa a jornada da garota apaixonada. Ela precisará lidar com a expectativa da vinda da criança que se desenvolve em seu ventre, seu relacionamento germinal com Fermín, além das atribuições na casa onde vive e ganha seu sustento.

Com uma fotografia deslumbrante, “Roma” enche os olhos d’água sem precisar mostrar uma só cor além do preto e branco. Imagem: Divulgação

Relações estreitas

O título da obra, no entanto, nada tem a ver com a capital italiana. Faz referência a Colonia Roma, bairro que já abrigou mansões de luxo e pequenos palácios de inspiração europeia na Cidade do México. Foi lá onde Cuarón passou parte de sua infância. A pista maior que o diretor, roteirista, produtor e co-autor do longa deixa sobre os paralelos da trama com sua vida é deixada na dedicatória dos créditos: o cineasta oferece o filme a Libo, apelido de Liboria Rodriguez. A revelação veio durante sua época de divulgação: a mulher, originária da aldeia de Tepelmeme, no Estado de Oaxaca, foi a mesma que trabalhou para a família de Alfonso por muitos anos.

Os contrastes sociais estão presentes no enredo de forma bem clara, como quando assistimos aos quatro filhos do casal de patrões escolherem um quarto cada, no segundo andar da casa, circulando um longo corredor, e não muito tempo depois entramos no mísero cômodo abarrotado onde dormem as duas domésticas.

Esse distanciamento, porém, não impede que o cuidado, o carinho e a cumplicidade permeiem o relacionamento de Cleo com a família, especialmente entre as crianças e Sofia (de Tavira), a matriarca. De fato, toda a dinâmica que envolve esses personagens evolui de forma tão sutil, mas atinge um patamar de dimensões sublimes, que é quase de tirar o fôlego ver o desenvolvimento da narrativa.

O dia a dia na zona de Colonia Roma é transposto com extrema fidelidade aos anos 1970 nos mínimos detalhes. Imagem: Divulgação

Tramas paralelas

Além do universo particular de Cleo, cheio de motivações e desejos complexos, a película retrata percursos correlatos. Um deles é a crise conjugal dos donos da casa. Sequências inusitadas como a longa tentativa do médico e pai de família de estacionar o carro na garagem da casa ou o ritual de Cleo para limpar dessa mesma garagem as fezes do cachorro ganham significados profundos em outras cenas adiante.

Outro exemplo notável é a reprodução do massacre de Corpus Christi, considerado um dos mais devastadores capítulos da história do México. Em 10 de junho de 1971, um grupo de jovens estudantes protestava nas ruas pela libertação de presos políticos e melhoria na educação, quando o governo autorizou a intervenção de soldados paramilitares treinados pela CIA. De início, eles utilizavam varas de bambu e técnicas do kendo, mas covardemente partiram para as armas de fogo, deixando cerca de 120 mortos em plena luz do dia.

Dessa vez, a desigualdade social vem se apresentar de forma mais abrangente, obrigando a protagonista a deixar seu lugar no contexto e partir para uma transformação ainda maior dentro de si.

Talvez a maior riqueza do longa esteja na profundidade de diferentes polos narrativos dentro de um todo coeso. Imagem: Divulgação

Um olhar transformado

Seja pelo uso de recursos estilísticos ou narrativos, certamente “Roma” é um filme especial. É impossível não deixar de reparar, por exemplo, nos vários momentos da ficção em que aeronaves aparecem, tanto em imagem quanto em som. Cuarón registrou de diversas maneiras excepcionais o símbolo do que em sua infância era sonho: tornar-se um piloto.

Até mesmo a direção foi executada de forma pouco convencional. As cenas foram gravadas todas na sequência cronológica do roteiro, e o material era entregue aos atores e equipe de produção somente no dia de cada filmagem, não permitindo que os envolvidos soubessem o que aconteceria na diária seguinte. É ligeiramente surreal imaginar que a atriz principal, Yalitza Aparicio, nunca havia atuado antes na vida, e na época em que foi chamada para um teste seus planos envolviam terminar os estudos para ser professora. Ainda não sabemos ao certo o futuro desta grande revelação, mas de uma coisa temos convicção: Alfonso Cuarón não nasceu para ser piloto. Nasceu para fazer filmes.

Sob o olhar que Cuarón custou a perceber, “Roma” é, na verdade, uma recriação de sua própria vida. Imagem: Divulgação