Mank e a relação com Cidadão Kane

30/11/2020 - POSTADO POR EM Filmes

“Você não pode captar a vida inteira de um homem em duas horas. No máximo, pode deixar uma impressão”

Herman Mankiewicz

A frase de Herman Mankiewicz (Gary Oldman), protagonista de Mank, novo longa de David Fincher, serve tanto para o personagem Charlie Kane (de Cidadão Kane) quanto para o próprio Mankiewicz, roteirista do icônico filme de 1941, dirigido por Orson Welles.

Mank expõe a inspiração e os bastidores da criação de um dos maiores filmes de todos os tempos sob a ótica de seu, por vezes esquecido, roteirista, aumentando a polêmica acerca dos créditos criativos de Welles no filme. A obra de Fincher adapta o roteiro de seu pai, Jack, escritor e jornalista falecido em 2003, e chega ao catálogo da Netflix no dia 4 de dezembro.

O Magnata

É impossível analisar e aproveitar Mank de forma completa sem conhecer a trama de Cidadão Kane – ponto negativo, inclusive -, portanto é necessária uma breve introdução: Charlie Kane é um órfão que herdou uma fortuna de seu novo pai nos EUA após a Grande Depressão de 1929. Com o dinheiro, o jovem de 25 anos compra um jornal local e investe todo o seu tempo na construção de um monopólio da comunicação, alçando sua imagem como a esperança do povo para a verdade.

A carreira política de Kane logo é impulsionada através de sua campanha para governador do Estado de Nova York. Sua influência e agressividade nos discursos rendem inimigos na caminhada ao sucesso e consequências inesperadas em sua vida pessoal.Louis B. MayerA carreira política de Kane logo é impulsionada através de sua campanha para governador do Estado de Nova York. Sua influência e agressividade nos discursos rendem inimigos na caminhada ao sucesso e consequências inesperadas em sua vida pessoal.

O protagonista deste clássico foi inspirado, dentre outros, pela vida de William Randolph Hearst, dono de vários jornais norte-americanos e de um oligopólio midiático no país. Mankiewicz era amigo de Marion Davies, atriz e amante de Hearst, que o convidava para festas em sua mansão em San Simeon, inspiração para o Xanadu no longa de Welles.  

Imagem: Divulgação

Sob pressão

Alcoólatra e sem papas na língua, o sagaz Mankiewicz foi um dos roteiristas contribuintes de O Mágico de Oz (1939) e colega de vários nomes que formaram a chamada Era de Ouro de Hollywood. Aliás, Fincher presta uma homenagem aos longas da época em Mank com sua trilha de jazz & blues, a fotografia monocromática e o tom jocoso de seus personagens.

Mankiewicz tinha total confiança de Orson Welles (Tom Burke), então intruso no meio cinematográfico e já com a ousadia de um projeto como Cidadão Kane. O desenvolvimento do roteiro do longa é o foco de Mank, que alterna entre flashbacks de sua vida em Hollywood e o quarto onde o roteirista, com a perna quebrada e sob a supervisão de Rita Alexander (Lily Collins), trabalha para entregar o texto final do filme em apenas duas semanas.

Oldman traz uma performance, assim como Mankiewicz, ardilosa e carregada de uma impaciência pelos anos do ambiente tóxico da maior indústria cinematográfica do mundo na época. Sua luta para manter a sobriedade e seu casamento é uma constante durante as duas linhas temporais do filme, que utiliza essa dinâmica para explicar as relações do roteiro de Cidadão Kane aos atritos que seu autor assistiu e realizou.

Imagem: Divulgação

A luta política

A fome por poder assume os holofotes de Mank quando a corrida pelo governo estadual da Califórnia inicia entre o democrata Upton Sinclair e o republicano Frank Merriam, apoiado pelo dono da produtora e distribuidora de filmes MGM, Louis B. Mayer (Arliss Howard), e pelo magnata das comunicações, Hearst (Charles Dance).    

Ambos trabalharam para “manchar” a imagem de Sinclair como um candidato do comunismo, “ameaça” insurgente na Europa que amedrontava o povo dos EUA. O embate entre o progressista Mankiewicz, bêbado, contra os dois conservadores gera uma das melhores cenas de 2020, com um monólogo afiado e cômico do protagonista.

Imagem: Divulgação

Veredito

Fincher não hesita em cutucar o túmulo de Welles aqui, apresentando um cineasta egoísta e com toques de megalomania em sua maior obra. Cidadão Kane enfrentou dificuldades de distribuição nos EUA pela tentativa de Hearst, influente na indústria, de impedir o seu lançamento, acusando Welles de comunista. Apesar disso, ainda recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Original, premiando tanto Mankiewicz quanto o diretor, algo que Mank também contesta.

Embora apareça pouco, Amanda Seyfried tem atuação de destaque como Marion Davies, que escancara as principais polêmicas de seu amante Hearst para seu amigo Mankiewicz.

Mank é um prato cheio para quem admira Cidadão Kane e Welles, encaixando cenas do longa de 1941 após quase 80 anos e apresentando a figura de um roteirista que não recebe o devido crédito que merece. 

Porém, para quem não conhece a obra original, se torna apenas um filme biográfico regular e que exige maior paciência pelo seu imbróglio político e ritmo por vezes cansativo. Essa necessidade para uma experiência completa pode afastar o público do mais diferenciado longa de David Fincher.

Pontos negativos

  • Necessidade de assistir Cidadão Kane para a experiência completa
  • Ritmo cansativo pela alternância entre as linhas temporais

Pontos positivos

  • Gary Oldman como fio condutor em outra grande performance
  • Diálogos dinâmicos conduzindo o forte peso político da obra

NOTA: 8