Um guia para The Handmaid’s Tale

19/06/2020 - POSTADO POR and EM Séries

Baseada no livro homônimo de Margareth Atwood, “The Handmaid’s Tale”, ou “O Conto da Aia” em português, se tornou a ficção especulativa mais famosa do mundo. A série é uma distopia em que a religião se tornou a base para todos os acontecimentos da sociedade – e as mulheres perderam os seus direitos como cidadãs. Aqui no Brasil, a terceira temporada da série acaba de chegar ao catálogo da Globoplay.

Somos grandes fãs e já assistimos as três temporadas. A vida de June (Elizabeth Moss), a protagonista, é uma eterna correria, então gostaríamos de explicar melhor para vocês como funciona o universo da série e alguns detalhes que podem ter passado despercebidos.

Se você é uma pessoa sensível a violência contra a mulher, estupro e mutilação, essa pode não ser uma boa opção de série. Não existem cenas explícitas, mas a menção a elas pode deixar algumas pessoas desconfortáveis. 

Atenção, o texto possui spoilers das três temporada de “The Handmaid’s Tale”.

Enredo 

Em um contexto de colapso mundial, a natalidade caiu vertiginosamente e a poluição cresceu muito, os Estados Unidos foram transformados em uma teocracia totalitária e com forte poder bélico: Gilead.

No novo regime, as mulheres perderam os direitos, precisando responder sempre ao homem da família. Aquelas que eram férteis e, anteriormente a Gilead, eram divorciadas, mães solteiras, tinham relações homossexuais ou simplesmente não eram adeptas à religião deles, foram transformadas em Aias. Um papel de serviência às famílias ricas que não conseguiam ter filhos.

A série acompanha a vida de June, uma mulher que era casada com um homem divorciado e tinha uma filha pequena. Por se encaixar nos padrões necessários, ela teve sua vida completamente transformada ao ser capturada pelo sistema e obrigada a se tornar Aia.

Conhecemos então o casal Waterford, donos da primeira casa onde June vai servir. Mensalmente, em seu período fértil, ela é estuprada pelo Comandante Fred (Joseph Fiennes) com a participação de sua esposa Serena (Yvonne Strahovski). Essa prática é comum, legalizada em Gilead por meio de passagens bíblicas, e recebe o nome de Cerimônia.

Até a terceira temporada, a série mostrou June tentando sobreviver ao regime e também salvar pessoas dentro de Gilead. Ela teve uma filha, Holly, que conseguiu enviar para o Canadá e chegou até seu marido, Luke (O. T. Fagbenle). No entanto, sua outra filha, Hannah, foi adotada por família de Comandante e seu paradeiro é desconhecido. 

June precisou se livrar de pensamentos de “pessoas comuns” para começar uma rebelião, escolhendo quem morreria e quem viveria. Encontrou aliados em meio ao caos, perdeu pessoas queridas e esteve à beira da morte em vários momentos. No final da terceira temporada, entendemos que a justiça começará a ser feita. 

Foto: Divulgação

Como Gilead surgiu

O enorme desejo por uma “nova ordem”, voltada para pensamentos tradicionais que tinham como premissa a valorização da natureza, dos costumes antigos e da vida em comunidade fez surgir uma enorme tensão política nos Estados Unidos.

Esse desejo surgiu depois de guerras pelo mundo que envolveram armas nucleares. Isso impactou diretamente a saúde das pessoas, a longevidade, fertilidade e, também, a saúde do planeta. Os criadores de Gilead desejavam construir um país que produzisse alimentos orgânicos, fosse extremamente controlado e também pudesse produzir muitos filhos, já que a queda na taxa de fertilidade foi extremamente brusca.

Todo um pensamento teórico foi construído em forma de manifesto para que esta dominância política chegasse ao poder. Tudo começou aos poucos. Na série, vemos June tentando usar seu cartão de débito, mas não consegue porque todo o dinheiro foi transferido para um novo responsável financeiro: seu marido. 

Quem fosse contra era punido. Não poderia escapar. Muitas famílias fugiram para o Canadá – ou o que restou delas, mas nem todos escaparam a tempo. Um grupo denominado Filhos de Jacó deu um golpe no governo norte-americano, culpando terroristas e depois assumindo o poder por completo.

Assim, Gilead foi construída. Igrejas e templos foram demolidos, assim como símbolos da antiga América, como estátuas e monumentos. Iconoclastas queriam construir uma nova imagem sobre o pó da história. 

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As inspirações bíblicas

  • Filhos de Jacó

O nome Gilead veio da Bíblia, no livro de Gênesis (31:21), de um lugar chamado de Galeede e tendo como plano de fundo a história de casamento entre Raquel e Jacó. O termo ainda faz referência à “salvação” e purificação dos Estados Unidos, que os autointitulados Filhos de Jacó, fundadores do regime, querem promover.

Segundo o livro de Gênesis (25:21), Jacó é filho de Isaque e Rebeca, neto de Abraão. Rebeca era estéril, por isso seu Jacó é considerado um milagre dentro da Bíblia. Ao crescer, Jacó casou-se Lia e também sua irmã Raquel, esta última era considerada estéril. Porém, mesmo com esses infortúnios, Jacó se tornou um homem abençoado por Deus, seus rebanhos aumentaram, construiu uma família grande e teve bastante servos e servas.

Com esse contexto, os homens mais conservadores e ricos dos Estados Unidos pré-Gilead se auto intitularam “Filhos de Jacó”. Eles se consideravam como salvadores, os escolhidos para a missão de retirar todas as mazelas do seu tempo. 

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  • A Cerimônia

A cerimônia funciona como o ritual de resgate à natalidade. As Aias atuam como os ventres e sua obrigação é ceder sua fertilidade para as famílias inférteis. A Aia se deita entre as pernas da Esposa, de como a conceber filhos como se fosse ela, enquanto isso comandante penetra na “serva”. 

A cerimônia é realizada uma vez por mês, no dia de maior fertilidade e nesse momento deve ser lida a passagem bíblica usada pelo regime para justificar todo o ocorrido, a citação você vê abaixo. Após o nascimento do bebê, a Aia permanece ao lado do filho apenas no período de amamentação, não podendo criar vínculos com a criança.

“Quando Raquel viu que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã. Por isso disse a Jacó: “Dê-me filhos ou morrerei! “
Jacó ficou irritado e disse: “Por acaso estou no lugar de Deus, que a impediu de ter filhos? “
Então ela respondeu: “Aqui está Bila, minha serva. Deite-se com ela, para que tenha filhos em meu lugar e por meio dela eu também possa formar família”.

Gênesis 30 (1:3)

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  • Casa de Jezebel 

Segundo a Bíblia, Jezebel era uma mulher forte, determinada e independente, que seguia as próprias regras e adorava os próprios deuses. Seu nome pode significar “impuro” e sua fama é a de prostituta, apesar de não existir uma afirmação exata nos escritos. 

Em Gilead, a Casa de Jezebel é uma instituição secreta que abriga mulheres que atuam como prostitutas para os homens ricos do país. As que estão ali puderam escolher entre se prostituir ou morrer nas colônias, limpando lixo tóxico. 

Esse lugar é frequentado, em geral, por Comandantes, tem bar, restaurante e toda uma equipe de empregados para manter tudo funcionando secretamente. Não é um lugar oficial de Gilead, mas sua existência é aprovada. 

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O que são as Aias 

As Aias eram mulheres férteis e que apresentava um comportamento reprovável aos olhos de Gilead. Para o regime se tornou ilegal relacionamentos homossexuaais, mães solteiras, relações extraconjugais, divórcios, religiões fora daquela seguida por Gilead. Quem se encaixasse nessas categorias e fosse fértil então faria parte da nova casta.

O processo de seleção foi feito através de testes de fertilidade realizados no período pré-Gilead. Caso uma mulher tivesse o comportamento indesejado e fosse estéril, ela deveria ir para o local de acúmulo de lixo tóxico ou para o Muro onde seria enforcada e colocada como exemplo.

A educação das Aias ficou a cargo de mulheres mais velhas que se dedicavam unicamente a cuidar delas, as Tias, casta das principais doutrinadoras do regime. Antes se serem encaminhadas às famílias, era necessário que elas passassem por um rígido treinamento, no qual aprenderiam a se comportar e servir de maneira exemplar nas tarefas que lhe eram cabíveis.

Os locais onde acontecem esses treinamentos são chamados de “Centro Raquel e Lia”, em referência à história bíblica, mas são popularmente conhecidos como “Centros Vermelhos”, cor que faz alusão à fertilidade. 

A Aias deviam ser servas exemplares, abandonar a vida de vaidades, manter seu corpo como templo (não consumindo nada que fosse considerado como droga – café, açúcar, gorduras), pois poderia afetar a fertilidade. Elas ainda deviam ser mansas, seguindo a passagem bíblica abaixo, mas de forma adaptada para doutrinar as moças:

“Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.”

Mateus (5: 3-5 )

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A sociedade

Cada casta existente em Gilead utiliza um modelo e cor de roupa. As Aias usam vermelho, as Esposas usam azul, as Tias (formadoras de aias) usam marrom, as Martas (empregadas) usam cinza, enquanto os Comandantes usam preto. 

Segundo o livro “A Psicologia das Cores” de Eva Heller, o vermelho está relacionado ao perigo e fertilidade; o azul à serenidade; o marrom ao sacrifício e mansidão. O cinza é a cor que na antiguidade identificava os mais pobres, pois não tinham como tingir suas roupas; e a cor preta significa sobriedade e seriedade.

Os casamentos em Gilead são todos arranjados de maneira a melhor satisfazer o regime. Se um homem trabalha e serve a seu país de maneira satisfatória, é condecorado e recebe como prêmio uma esposa: uma jovem de família mais pobre e em idade fértil (geralmente, a partir dos 13 ou 14 anos). 

O sexo deve existir apenas para procriação. Métodos contraceptivos não são permitidos, assim como abortos. Mulheres não podem ler ou escrever, recebendo como punição a perda de um dedo ou outro membro.

O suplício público é usado como punição e educação. Pessoas enforcadas são colocadas no “muro” ou penduradas em praças, postes e locais de grande acesso. Na série, vemos uma adolescente casada se apaixonar por seu segurança e fugir com ele. Os dois são pegos e obrigados a cometer suicídio em uma piscina na frente de todos os moradores da cidade – incluindo seus pais. 

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O consumo é extremamente regulado, sendo de roupas, móveis ou comida. Todos recebem “vales-compra” de acordo com seu nível social. Os ambientes são vigiados frequentemente e mulheres não podem andar sozinhas. 

Não existe moda, literatura, artes e algumas vertentes médicas, com a psiquiatria. Remédios como reguladores de humor e antidepressivos, por exemplo, são banidos de Gilead. Tudo deve ser tratado com chás e remédios naturais. 

As mulheres foram as culpadas pela baixa taxa de natalidade, mas médicos e pesquisadores acreditam que o problema esteja nos homens. Por isso, muitas Esposas acabam levando suas Aias para serem estupradas por outros homens – além de seus maridos. 

Gilead tem como objetivo expandir a “produção” de Aias e exportá-las, já que não é só a América está sofrendo com a baixa natalidade. Isso funciona como um motivo para que outros países não tentem intervir, já que eles também precisam das Aias

Foto: Divulgação

As referências históricas

Maragerth Atwood, autora do livro que serviu de base para a série, é uma das maiores estudiosas do intelectualismo feminista, opressão feminina e religiões. Ela utiliza suas obras de ficção científica especulativa para criticar os problemas sociais. 

Durante o governo conservador do presidente norte-americano Ronald Reagan (1981 – 1989), foi escrito “O Conto da Aia” (1985). Na época a figura de sua esposa, Nancy, era usada como símbolo da mulher a ser seguida.  Durante essa época, houve uma estagnação no avanço dos direitos femininos, além de uma forte campanha contra o aborto legal.

No teaser da terceira temporada da série é feita uma clara alusão à campanha de Ronald Reagan, veja e compare: 

Teaser de The Handmaid’s Tale
Campanha de Ronald Reagan

Enquanto isso, no Oriente acontecia a revolução que tinha como ideia cassar os direitos femininos, expulsar tudo que vinha do Ocidente e dar poder para o fundamentalismo do Islã Xiita. Até o fim da década de 1970, as mulheres do Irã tinha acesso à educação e não eram subordinadas à autoridade do marido/pai, além de não se fazer necessário o chador que passou ser obrigatório.  Você pode conferir os que aconteceu nessa reportagem da BBC.

Margareth ainda usou o fato de que os nazistas passaram a premiar as mulheres por terem muitos filhos como inspiração. Durante esse período sombrio, a alta taxa de natalidade era vista pela Mutterkreuz (Cruz de Honra das Mães Alemãs) como forma de aumentar a raça ariana. Você pode entender melhor esse contexto nessa reportagem da revista Super Interessante.

Em várias entrevistas Margareth deixou claro que o livro, apesar de falar sobre um possível futuro, teve inspiração em vários acontecimentos do passado da humanidade. Indo desde disputas religiosas, quanto políticas, em que os direitos das mulheres são os primeiros a serem cassados.

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