Sharp Objects: Palavras de dor e sofrimento

28/08/2018 - POSTADO POR EM HQs/Livros E Séries

Quando a escritora norte americana Gillian Flynn publicou seu primeiro livro, intitulado Sharp Objects originalmente, mais de uma década atrás, talvez não tivesse noção do resultado que daria. É certo, porém, que agora a jornalista nascida em Kansas, no Missouri, colhe bons frutos de seu trabalho. E dado o perfil de suas outras obras, a jornada deve ter sido sofrida.

Esta semana, a minissérie da HBO baseada em “Objetos Cortantes” (Intrínseca) chegou ao seu suposto fim, e ainda estamos tentando nos recuperar. Não vai ser assim tão fácil para aqueles que não conheciam o livro, mas vamos tentar superar o baque juntos.

Um caso de polícia

Você está no trabalho, uma sala de redação de jornal cheia de movimento e energia. Seu chefe e editor chama à sua sala particular e começa a lhe fazer perguntas sobre onde você nasceu, e logo a disposição que você ainda tinha vai se esvaindo aos poucos.

Camille Preaker é a personagem principal de “Sharp Objects”, e sua tarefa já não deveria ser simples pois teria de investigar, como membro da imprensa, o desaparecimento de uma menina em Wind Gap, pequena cidade interiorana dos Estados Unidos. A pauta prometia ainda maior esforço pois o último lugar que a protagonista gostaria de revisitar era a província natal.

A coisa toda complica exponencialmente quando, mais tarde, o corpo da menina desaparecida é encontrado à mercê dos transeuntes, ao lado da delegacia em plena luz do dia. Natalie Keene teve todos os seus dentes arrancados da boca, aludindo ao caso de outra jovem da mesma idade, ocorrido cerca de oito meses antes.

Matt Craven (esq.) e Chris Messina (dir.) interpretam respectivamente o xerife Vickery e o detetive contratado de fora, Willis. Imagem: Divulgação

Uma família difícil

Mesmo assim, Camille prossegue. E na cidadezinha, ela reencontra a mãe (interpretada com maestria por Patricia Clarkson), seu padrasto, Allan Crellin (Henry Czerny), e a irmã por parte da genitora, Amma (a novata Eliza Scanlen). A figura do pai, que deixou o quadro, é evocada apenas uma vez, tal como no livro.

A família é problemática. Logo de início, o fluxo de consciência da condutora da trama nos mostra o tique nervoso de Adora, puxando seus cílios quando a filha a deixa irritada, e o mergulho na negligência do homem da casa, que parece ocupar os dias inteiros ouvindo música clássica e erudita em “seu novo brinquedo”.

É mais curiosa a maneira como Camille se encontra com a irmã, uma adolescente que em casa se veste como a filha perfeitinha do papai (ou melhor, da mamãe), laço no cabelo meticulosamente penteado e vestido florido. No entanto, quando a repórter está focando no trabalho de investigação para fazer a matéria a que lhe foi designada ― e diga-se de passagem, evitando bater na porta de casa ―, ela cruza com garotas bem diferentes, vestindo shorts curtos, três pares de patins e um baseado de maconha compartilhado entre elas.

Provavelmente a família mais rica de Wind Gap, os Crellin ostentam todas as luzes acesas da casa vitoriana à noite. Imagem: Divulgação

Uma garota não exemplar

Somente no dia seguinte de sua estadia é que Camille vai ter contato com a irmã, praticamente irreconhecível sob a proteção do lar. Lá, Preaker também mantém uma íntima relação com sua primeira irmã mais nova, a garotinha que morreu anos atrás, deixando uma mancha irreparável no retrato da família: tudo dentro de sua cabeça, é claro.

Um dos maiores traços e primores do seriado é sua edição, que sob o olhar extremamente cuidadoso do diretor canadense, Jean-Marc Vallée (“Livre”, 2014, e “Big Little Lies”, 2017), traz imagens em flashback cortadas e redistribuídas ao longo de todos os oito capítulos da história. Por acaso (ou por decisão da autora do livro, produtora executiva na série), esses mesmos episódios possuem títulos de apenas uma palavra cada, palavras estas que carregam significado forte no enredo.

É que Camille Preaker tem um trauma do passado, daqueles que literalmente suporta na pele. Ela (sobre)viveu parte da adolescência e vida jovem adulta cortando cada parte do seu corpo com expressões de ódio, gracejo ou vergonha. Daí a necessidade de sempre andar vestida dos pés à cabeça em mangas compridas, e o rosto que a atriz Amy Adams mostra é assustadoramente cheio de emoção. É impossível não se envolver com o mistério em torno desse vício que a personagem alimenta e tenta desvirtuar com álcool misturado em água, praticamente vinte e quatro horas por dia.

O contraste de Camille contra a cidade que parou no tempo é evidente em sua roupa, seus trejeitos e seu modus operandi. Imagem: Divulgação

Diagnóstico: compulsão por procuração

Em diversos níveis complicados, “Sharp Objects” é uma narrativa sobre violência. Mais precisamente, sobre o comportamento violento das mulheres quando colocadas sob pressão, seja psicológica, emocional ou afetiva. Gillian Flynn é criadora de outras heroínas complexas; vide “Garota Exemplar” (2014) e “Lugares Escuros” (2015). O entrecho de toda a produção é repleto de suspense, mas sobretudo vem impulsionado pelo cuidado que os envolvidos na adaptação trazem. A própria Amy Adams também é produtora aqui.

Não há confirmação de segunda temporada, mas o final surpreendente e inquietante nos deixa levemente desesperados. A tradução para televisão foi tão fiel, que é possível identificar diálogos idênticos aos descritos no livro, mas esta versão acaba trazendo um charme e ambientações bem envolventes, a começar da abertura, que contém uma só sequência de imagens, acompanhada da mesma música belíssima, mas composta em variados estilos.

Todo esse cenário atraente e realista, no entanto, esconde segredos sinistros, os quais o espectador procura evitar, não obstante tem dificuldade de se afastar. E fica a sugestão: ao desfecho do último episódio, por via das dúvidas, assista a todo o curso dos créditos finais, até a tela apagar.

Eliza Scanlen demonstra no papel de Amma uma garota cheia de desejos, disfarçados em apatia de muitas camadas. Imagem: Divulgação