Black Mirror e o limite da tecnologia

05/01/2018 - POSTADO POR and EM Séries

A série popular mais “mindblowing” da Netflix, “Black Mirror”, acaba de estrear sua 4ª temporada na plataforma e, com seis novas narrativas, retoma o clima de distopia bastante singular das temporadas anteriores, apresentando plot twists impactantes e inúmeros questionamentos sobre a relação da tecnologia com a sociedade.

Os tópicos a seguir contêm spoilers dos episódios.

USS Callister

O primeiro episódio desta temporada nos apresenta uma ambientação inspirada na série clássica de ficção científica “Star Trek” (1966), por meio de um jogo simulador de realidade chamado “Infinity”, produzido por um gênio da tecnologia introspectivo e obsessivo, que usa o jogo para tentar suprir suas deficiências sociais e sua passibilidade diante dos outros. 

Mas, como nada é simples no universo de “Black Mirror”, não se trata somente da tentativa de encaixar-se de Daly (Jesse Plemons), mas sim do impacto que a tecnologia criada por ele tem sobre a vida e a liberdade de pessoas que ele conhece e, consequentemente, foram adicionadas a essa realidade sem consentimento algum.

Apesar de versões digitais de pessoas reais, os personagens da aventura espacial de Daly são idênticos às suas personas do mundo real, ou seja, possuem consciência, sentem dor e angústia e, por isso, consideram-se vivos. Eles são uma cópia perfeita das pessoas que trabalham com ele, mas foram aprisionadas por seu DNA nesse jogo interminável. Assim, a vontade de viver e de se libertar desse universo é real e sentida, pois, como vemos, Nanette, Walton, Shania, e todos os outros personagens secundários, estão em eterna busca pela liberdade de suas existências digitais – uma vez que as mesmas, para eles, são sua única existência consciente -, preferindo a morte do que o eterno controle de Daly sobre suas vidas. Finalmente, eles permanecem na simulação de aventura galáctica, mas agora são livres para desbravá-la.

Diante das possibilidades apresentadas, o diretor do episódio, Toby Haynes (Sherlock, Doctor Who), citou a chance de haver um spin-off para expandir o universo desse episódio. Então quem se interessar pela temática pode aguardar novidades…   

Foto: Divulgação

Arkangel

No primeiro episódio de Black Mirror dirigido por uma mulher (Jodie Foster), a série aborda um dos nichos mais ascendentes da tecnologia: as ferramentas de monitoramento parental. Acompanhamos a história de uma mãe solteira, Marie Sambrell (Rosemarie DeWitt), que após perder sua filha num playground, decide torná-la cobaia do Arkangel, um implante que, uma vez instalado, permite que os pais e mães vejam onde os seus filhos estão e o que eles veem por meio de um tablet. A tecnologia conta ainda com uma ferramenta que censura determinadas imagens e sons percebidas pela criança como estressantes. Assim, toda vez que um cachorro grande latia para Sara no seu caminho para a escola, tudo o que ela via era um grande borrão emudecido se movendo por trás de uma grade. 

O episódio explora a ânsia dos pais de utilizarem as tecnologias para proteger seus filhos e o quanto essa proteção pode ser mortificante para as crianças caso elas se tornem alheias aos conflitos, às frustrações e às dores que estão implicadas em crescer e em viver. Além disso, a censura parental do Arkangel surtiu em Sara certa fascinação pelas coisas que lhes eram ocultadas, como é simbolizado perfeitamente numa cena em que a garota se corta para tentar ver o seu próprio sangue, mas só consegue enxergar um vermelho pixelado saindo do seu dedo. Apesar de explorar temáticas interessantes e levantar questionamentos relevantes, o episódio peca por um desenvolvimento do enredo bastante previsível.

Foto: Divulgação

Crocodile

Ambientado na Islândia, Crocodile se inicia com um atropelamento acidental cometido por um homem na companhia da sua namorada. A moça, Mia (Andrea Riseborough), apesar de relutante, ajuda o namorado a esconder o corpo. Anos depois, entretanto, quando Mia já tinha formado uma família com outro homem e estabelecido uma carreira de sucesso, o seu ex-namorado se encontra com ela e revela que deseja confessar o crime. Mia, percebendo como essa confissão poderia comprometer a sua vida e tudo o que construiu nos últimos anos, mata o homem.

Se estivéssemos assistindo a um filme de crime e suspense qualquer, a história poderia até parar aí. Mas Black Mirror introduz um dispositivo que dá aos investigadores de crimes o acesso às memórias das testemunhas. Sempre que algum crime é cometido, todos aqueles que o presenciaram são obrigados pela lei a emprestarem suas memórias para auxiliar a investigação. Dessa forma, na falta de câmeras de vigilância, basta alguns pares de olhos e de ouvidos para que a Justiça obtenha a verdade sobre qualquer crime. Encobrir um delito, então, se torna uma tarefa exaustiva, beirando ao impossível, não bastando mais comprar o silêncio daqueles que sabem demais, porque o Estado tem acesso às nossas memórias e às nossas mentes, levando Mia a tomar medidas cada vez mais drásticas para esconder seu crime.

Apesar do episódio lembrar “The Entire History of You”, em que chips armazenavam todas as nossas memórias, a tecnologia descrita nesse episódio tem acesso direto às recordações, sem a necessidade de um dispositivo que recepcione e armazene nossas percepções. O acesso, entretanto, como não é mediado por um programa de armazenamento, depende da nossa capacidade mental de evocação de memórias, sendo possível, portanto, que troquemos a cor de alguma roupa que vimos e que lembremos mais de algo que nos chamou a atenção, como alguém que percebemos como atraente. Nesse episódio, Black Mirror acerta em apresentar ao espectador de forma verossímil o funcionamento do processo mental de armazenamento e evocação de memórias.

Foto: Divulgação

Hang the DJ

Considerado por muitos o “San Junipero” (S03xEP04) da quarta temporada, “Hang The DJ” é mais uma história de romance no universo distópico de “Black Mirror”. Nessa realidade, as pessoas usam um tipo de conselheira online para encontrar seu par perfeito. Um processo que consiste em conhecer e sair com diversas pessoas, escolhidas e analisadas pela conselheira. Esses encontros possuem uma data de validade, que deve ser seguida por todos, para que, no futuro, o par definitivo do usuário seja decidido com 99,8% de certeza.

Amy e Frank são usuários desse Tinder moderno e, ao serem designados um para o outro, acabam se apaixonando. Mesmo com o curto tempo de seu primeiro encontro, ambos não esquecem daquele singelo momento. Vemos, então, uma história de amor peculiar, mais leve que o tom dos outros episódios da temporada, mas ainda muito significativa.

Ao final do episódio, Amy e Frank lutam para ficarem juntos, em um ato revolucionário contra o sistema. Finalmente, sobe à tela a mensagem de 1000 simulações completadas e, assim, percebemos que toda a história dos dois não passava de uma simulação de algoritmos em um aplicativo de encontros online. É nesse momento que somos apresentados ao mundo real, onde a Amy e o Frank reais olham seu match na tela do celular e, ao seus olhos se encontrarem, sorriem um para o outro, ao som de “Panic” da banda The Smiths:

“Burn down the disco, hang the blessed dj, because the music that they constantly play, It say nothing to me about my life”. (“Incendeiem a discoteca, queimem o bendito dj, porque a música que eles tocam constantemente não me diz nada sobre a minha vida”).

Foto: Divulgação

Metalhead

Com uma fotografia em preto e branco, que remete aos filmes de terror clássicos, o quinto episódio é,sem dúvidas, o episódio com a estética mais singular da temporada, explorando uma ambientação pós-apocalíptica com uma pegada cinematográfica de perseguição e suspense, que causa tensão do começo ao fim.

Não é possível saber, a princípio, o que se passa naquele lugar, ou qual o objetivo daquele grupo de pessoas. O diretor não faz questão de explicar. O que é fácil captar é que os robôs são os antagonistas dessa realidade, onde os humanos parecem reféns dessas máquinas. Então, acompanhamos o que parece ser um grupo rebelde em busca de uma caixa especial, mas que acaba sendo surpreendido por um robô canino, que parece não se satisfazer até eliminar todos os intrusos rebeldes. É, assim, que começa a fuga em busca de sobreviver da protagonista, Bella (Maxine Peake).

Considerando um dos episódios mais sangrentos e tensos da temporada, “Metalhead” não é só uma história sobre sobrevivência, mas uma história sobre esperança. Pois, mesmo após  encarar a morte, a protagonista luta para retornar às pessoas com quem parece viver. E, ao fim do episódio, descobrimos o conteúdo da caixa pelo qual o grupo arriscou suas vidas – ursinhos de pelúcia, que, deduzindo, seriam dados a crianças que estão morrendo. Isso mostra, na minha opinião (#Aline), que em momentos de ameaça e de perigo, os homens são capazes de se unir e manter a compaixão e humanidade diante do sofrimento, sempre encontrando um jeito de alimentar a esperança.

Foto: Divulgação

Black Museum

Com um formato análogo ao de “White Christmas”, “Black Museum” nos introduz a história da jovem Nish, que visita um museu de artefatos criminológicos onde é recebida por Rolo Haynes, seu proprietário. Rolo conta histórias por trás de três artefatos do museu, dividindo o episódio em 3 partes, embora no fim todas se encaixem.

O primeiro artefato consiste em uma tecnologia ofertada por Rolo para um médico que o permitia sentir a dor que seus pacientes sentiam e, consequentemente, diagnosticar suas enfermidades com maior eficácia. Um problema no implante do médico, entretanto, faz com que ele passe a sentir prazer na dor, buscando incessantemente em cada paciente não mais a possibilidade de salvar uma vida, mas de sentir uma dose cada vez maior de dor, com a voracidade de um dependente químico. Adaptado de uma história escrita por Penn Jillette, “Pain Addict”, esse trecho causa bastante aflição no telespectador, tanto pela condição do médico quanto pelas imagens perturbadoras com que sua história é retratada.

As histórias por trás dos outros dois artefatos dizem respeito a transferência de consciências humanas para dispositivos digitais, assuntos que já foram abordados em “San Junipero”, “White Christmas” e mesmo em “USS Calister” nessa temporada. Black Mirror aqui levanta mais uma vez, de forma ainda mais angustiante do que nos anteriores, o questionamento de como a tecnologia pode borrar os limites entre vida e inteligência artificial, e como isso dá margem para a desumanização daqueles que são cobaias dessas ferramentas. Apesar de ser um dos episódios mais deliciosamente angustiantes que eu (#Bruno) já assisti de Black Mirror, me preocupa a série está insistindo tanto em consciências virtuais/digitais, tendo, talvez, já exaurido esses  temas.

Foto: Divulgação

Conclusão

As expectativas para esta temporada foram altas, principalmente pela qualidade ascendente que a série apresentou. Com um foco maior em tecnologias de armazenamento de memória e controle de consciência, a 4ª temporada deixa uma sensação de déjà vu.

Com episódios ainda impactantes, como “Metalhead” e “Black Museum”, e boas referências à ficção científica, como em “USS Callister”, a temporada sustenta sua originalidade e qualidade técnica, mas não parece alcançar o mesmo nível do restante da série. Apesar de ser muito boa, não arranca o comentário “nossa, isso é tão Black Mirror” como suas temporadas anteriores.