THE WICKED + THE DIVINE: AS (DES)VANTAGENS DE SER UM DEUS

24/04/2018 - POSTADO POR EM HQs/Livros

A cada noventa anos, doze pessoas comuns são escolhidas aleatoriamente para ocupar o lugar e a função de divindades do Panteão, deuses conhecidos de múltiplas mitologias e religiões das mais diversas. Neste ciclo, conhecido como Recorrência, a seleção das figuras reencarnadas permite que aquela pessoa “agraciada” permaneça viva por dois anos apenas.

Essa é a premissa da história em quadrinhos fantástica, criada em 2014 por Kieron Gillen (da Marvel Comics), “The Wicked + the Divine”. Ilustrada por Jamie McKelvie e publicada no Brasil com o selo Geektopia, a narrativa se concentra, em seus primeiros capítulos, na personagem de Laura, uma fã do clube do Panteão que não vai medir esforços para se aproximar do grupo de quantos deuses ela for capaz.

Arte que imita a vida

Originalmente, o britânico Gillen tirou a ideia da série a partir do descobrimento do câncer e do posterior estado terminal de seu pai. Por essa razão, o próprio autor descreve a obra como um conto “sobre vida e morte”. Em consonância, o traço do ilustrador, McKelvie, é cheio de vida e cores bastante vibrantes, e pontualmente nos apresenta imagens severas e sombrias. Por outro lado, muitas personagens são inspiradas em ídolos contemporâneos e clássicos da cultura pop, e a música é vital para compor o espetáculo, focado intimamente na apresentação dessas deidades. Não é a toa que o criador da trama em si elaborou uma playlist no Spotify (que colocamos acima) como sugestão para se ouvir enquanto se passam as páginas dos quadrinhos.

Na abertura mesmo da HQ, somos apresentados à deusa Amaterasu, representante xintoísta do universo e da luz, simbolizada pelo sol. A personagem é assumidamente baseada numa combinação entre a cantora inglesa Florence Welch, vocalista da banda Florence + the Machine, e a norte-americana Stevie Nicks, do Fleetwood Mac.

Laura é uma garota que, assim como qualquer um, tem verdadeira estima pela vida dos deuses. Foto: Gabriel Macedo

Cabeças vão explodir

Em 2014, um grupo de entrevistadores céticos tenta desmascarar a deusa do sol logo após uma de suas performances, enquanto uma entusiasta que acabou de desmaiar de êxtase no show (sim, os deuses provocam esse tipo de reação) é recrutada por Lúcifer, a rainha do inferno, para participar da conversa. No meio da entrevista, um tiroteio surpreende a todos no local, e Luci (aquela mesma) acaba assassinando os dois atiradores de elite com um simples estalar de dedos (eles também fazem isso).

A themonia (pode chamar assim?) é levada a julgamento e lá outra ocorrência espalha o caos por toda a comunidade, e Lúcifer é presa, alegando que dessa vez não foi a culpada. Assim, o enredo propriamente dito tem início: quando Laura, a garota que é fascinada pelos deuses, parte em uma investigação independente e perigosa entre os demais membros do Panteão sobre quem de fato matou o juiz que condenaria Luci. E daí podemos acompanhar cada passo desta reles mortal em uma tramoia cheia de sedução, competição de egos, obsessão pela aparência e jogos de influência.

Apesar de extremamente colorida e vivaz, a história esconde temas um tanto quanto sombrios também. Foto: Gabriel Macedo

Deuses são reais!

Para além da beleza evidente das cenas coloridas e carregadas de energia, a grande sacada de “The Wicked + the Divine” é talvez o uso que o autor e o desenhista fazem do que essas “estrelas” representam para a sociedade consumista, especialmente da indústria musical. Basicamente todos os personagens são inspirados em algum ícone. Na agitação londrina dos clubes de Dionísio ou nos grandes festivais que varam a noite, podemos reconhecer símbolos como o andrógino Prince, o controverso Justin Bieber, a rainha Madonna, os irmãos do Daft Punk e até o fora-desse-planeta David Bowie.

A analogia de que qualquer pessoa um dia pode se tornar um deus e depois de dois anos desaparecer da Terra sem deixar vestígios é genial e nos faz refletir sobre como os fandoms realmente tratam seus heróis. Aquele conhecido lema “Live fast, die young and leave a good-looking corpse”, erroneamente atribuído ao ator James Dean, pode ser atualizado com fidelidade para o termo que inclusive está presente em um dos momentos mais marcantes das páginas de “Wicked + Divine”. De “Viva rápido, morra jovem e deixe um belo cadáver” para “Você vive apenas uma vez” (“You Only Live Once”).

“The Wicked + the Divine” mistura a mitologia de deuses de diversas origens e crenças. Foto: Gabriel Macedo

Culto às celebridades

E no subtexto dessa trajetória que a princípio nos parece apenas um caso de investigação, muitos temas são abordados. Em paralelo ao culto às celebridades, a intervenção das redes sociais e a busca desenfreada e irreverente pela fama, questões mais delicadas são retratadas com um tom ora sutil, ora arrebatador: a HQ toca na polêmica do suicídio, nas delicadas e sempre atribuladas crises de adolescência, na problemática do uso de drogas e até na complexidade da depressão.

Tudo aparece de forma tão cuidadosa, que é praticamente impossível não se identificar com a humanidade impressa pelos personagens, sejam eles deuses ou simples humanos. É possível associar suas experiências de medo, desejos, tristezas ou euforia com pelo menos uma das que tivemos contato em nossas vivências, e essas sensações vêm quase como de supetão, pois o desenlace é tão farto de reviravoltas, curiosidades e surpresas, que mal se dá conta das páginas que são viradas em pouco tempo, assim como na própria vida real.

Se você gosta de música, certamente vai encontrar nesta HQ muitas referências para se deslumbrar. Foto: Gabriel Macedo