Entrevista: jornalistas cearenses fazem documentário sobre adoção no estado

04/04/2020 - POSTADO POR EM Filmes

O processo para adotar uma criança no Brasil é mais complexo do que se imagina. Mesmo com o grande número de jovens sem família, a jornada para conseguir um novo lar por alguém que só quer dar amor é longa.

No documentário “Se você vem amanhã”, de Émerson Rodrigues e de Henrique Villela (sim, nosso querido editor do Roteiro!), conhecemos as histórias de famílias de Fortaleza e acompanhamos suas lutas diárias para avançar na fila de adoção. Testemunhamos também a felicidade de quem já esteve nesse mesmo local e hoje tem sua família formada, bem como depoimentos de representantes responsáveis pela celeridade do Cadastro Nacional de Adoção – CNA. 

Imagem: Henrique Villela e Émerson Rodrigues

Apresentado como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Federal do Ceará no fim de 2019, o longa já foi exibido no cinema do Shopping Benfica, em Fortaleza, e agora está disponível no YouTube.

Conversamos com um dos diretores, Henrique Villela, sobre as diversas etapas para se chegar ao produto final (e a sobrevida do documentário). Confira a entrevista a seguir:

Roteiro Nerd: Como você e o Émerson decidiram que queriam fazer um Trabalho de Conclusão de Curso com foco no processo de adoção aqui no Ceará?

Henrique Villela: Bem, o que veio primeiro foi a decisão de trabalhar com audiovisual. Ambos tínhamos o desejo de explorar essa área e sabíamos que haviam muitas possibilidades nesse meio. Também queríamos retratar um tema de relevância social. Fizemos até um brainstorming, mas eu digo que o assunto da adoção era pra ser mesmo porque ele acabou vindo naturalmente, através de uma amiga da família que era voluntária na ONG Acalanto Fortaleza (que acabou sendo uma grande parceira no trabalho). Eu fiquei com isso na cabeça e quando eu comentei com o Émerson “clicou”, e assim a gente soube que era isso.

Começamos a pesquisar e vimos que era um tema que não recebia atenção suficiente da mídia, e quando tinha não era aprofundado – o que só nos motivou ainda mais a seguir esse caminho e mostrou que era um trabalho necessário. 

RN: Desde o esboço inicial do projeto até a sua versão final, muitos elementos mudaram? Quais alterações foram feitas ao longo da produção?

HV: Uma das coisas que mudou da proposta inicial foi o número de personagens. Nossa ideia, na fase de concepção do projeto, era acompanhar e comparar o processo de dois casais, sendo um heteroafetivo e outro homoafetivo. Porém, na fase de contactar as fontes, percebemos que levaria mais tempo do que tínhamos disponível para acompanhar a totalidade desses processos.

Tínhamos cerca de um ano e muitos casos chegam a levar dois, três ou mais anos para serem concluídos. Foi aí que decidimos abranger mais atores sociais, desde pretendentes até famílias já formadas através da adoção, bem como representantes do poder judiciário envolvidos no processo de adoção. Isso acabou aumentando o escopo do projeto: no final foram 37 entrevistados e mais de 30 horas de material gravado, resultando num longa de 1 hora e 20 minutos.

RN: Durante os processos de construção do documentário, qual foi o mais complicado? A apuração, as entrevistas, a pós-produção, a distribuição…

HV: Pessoalmente, eu diria que foi a montagem. Pelo motivo que falei há pouco, nós tínhamos muito material e não tínhamos nem concluído as gravações enquanto os prazos se aproximavam e a simultaneamente íamos construindo o documentário na sala de edição. Isso perpassa também o processo de roteirização, porque quando você tem essa quantidade de material, você pode seguir tantos caminhos que fica difícil escolher um ou até saber por onde começar.

Tínhamos pensado em seguir linhas temporais distintas até, mas resolvemos que para nós e também para o espectador seria melhor seguir uma ordem semi-cronológica, se não ficaria confuso acompanhar tantas histórias. Isso trouxe uma clareza maior para o projeto, mas ainda há um grau de complexidade na montagem, porque ocasionalmente a gente avança ou retrocede alguns depoimentos que se complementam e enriquecem o trabalho. Foi algo que demandou um conhecimento e uma análise minuciosa do nosso material, além de uma sensibilidade audiovisual que acho que conseguimos equilibrar durante esse processo.

RN: Como era e o que se tornou a relação de vocês com a adoção e com os personagens do documentário?

HV: Antes do documentário a nossa relação com a adoção era mínima, pra não dizer inexistente. Então o que chegava pra nós era o que estava na mídia, que é um discurso de que muitas crianças estão nos abrigos porque os pretendentes só querem um perfil X de criança. Acontece que esse discurso é errôneo, e ele é conveniente para o poder judiciário que não dá prioridade para os processos dessas crianças e ainda insiste numa visão biológica de família que acaba prolongando a estadia dos menores em casas de acolhimento, comprometendo o desenvolvimento saudável deles.

Esse processo nos ensinou muita coisa, especialmente a pôr em prática uma visão humanizada dos nossos entrevistados. Construímos uma relação de parceria com eles, e somos muito gratos a todos que contribuíram com esse processo. Fica a lição de que mais que uma prática, a adoção é uma causa, que precisa de pessoas que lutem por ela e pelos direitos das crianças e dos adolescentes. A gente espera ter conseguido contribuir, ainda que um pouco, com essa luta.

RN: Vocês acham que ele vai ajudar de alguma forma o público que está nas filas de adoção do Brasil?

HV: Nó já tivemos alguma resposta nesse sentido de pretendentes aqui, do estado do Ceará, e isso nos deixa muito felizes. Só de ter a oportunidade de trazer não só informação mas também alguma esperança para quem está na fila, já é uma sensação de dever cumprido. A gente percebe que é um produto que provoca uma mistura de sentimentos. Vemos os pretendentes cheios de amor pra dar a essas crianças, enquanto elas envelhecem nas casas de acolhimentos sem nem estarem disponíveis para adoção. Ao mesmo tempo que gera uma indignação por esses processos que não andam, a gente vê nas histórias das famílias formadas que essa é uma luta que vale à pena, e que com amor e empatia tudo se conquista.

A gente espera que o documentário possa inspirar pretendentes que aguardam seus filhos, e que ajude as pessoas ao redor desses pretendentes a ter um olhar mais compreensivo, incluindo os familiares e todos os atores sociais envolvidos nesse processo.

RN: Após o produto ficar pronto, qual foi o sentimento de vocês? O que vocês tiraram dessa jornada que levam para suas vidas?

HV: Primeiramente, o que fica é um sentimento de gratidão pela chance de retratar essas histórias tão sensíveis e tão humanas. A gente sabe que foi necessário uma confiança por parte dos nossos entrevistados em abrirem suas vidas para nós. Mas o mais bonito é sentir que todos, de alguma forma, contribuem para essa causa. Um casal de pretendentes definiu o documentário como um “raio x” de seu filho ou filha que ainda não chegou, e eu acho isso muito bonito porque é algo que não tinha nos ocorrido mas é um privilégio termos conseguido proporcionar isso. Eu diria que só por essas pessoas já valeu a pena. Se chegar mais longe e motivar alguma transformação nesse processo, eu considero um bônus.

Acho que eu e o Émerson aprendemos muito um com o outro, aprendemos com nossos entrevistados e com todo o processo. Esse trabalho reforçou em nós um senso de humanidade necessário para o jornalismo e destacou a importância de um olhar mais aprofundado em questões como essa. Mais de um personagem chama a atenção pro fato de que cada pretendente tem sua história de vida e que isso precisa ser respeitado, e eu extrapolo isso como uma lição de que cada um de nós tem sua história, e se a gente tirar um momento pra enxergar o outro como um igual, mesmo com suas particularidades, veremos que não somos assim tão diferentes e todos merecem respeito.