Coringa: a ríspida e turbulenta jornada do vilão

03/10/2019 - POSTADO POR EM Filmes

Após o término da primeira fase da agigantada franquia de filmes da Marvel, a concorrente DC ainda estava na busca de um blockbuster à altura de “Batman: O Cavaleiro das Trevas”. Após inúmeras investidas medianas, a Warner (detentora da marca DC) apostou na ideia de inserir seu vilão mais emblemático em um filme próprio. Com base no hype na internet, assim como a conquista do prêmio de Melhor Filme no Festival de Veneza, pode-se dizer que “Coringa” não precisou de nenhum herói para conquistar seus méritos.

Coringa antes do Coringa

É 1981. Enquanto Bruce Wayne (Dante Pereira-Olson) é só uma criança tímida e a opulência das empresas Wayne desperta a luta de classe entre os cidadãos despossuídos de Gotham, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) absorve todo tipo de violência durante o seu trabalho pela cidade como palhaço. Seu cotidiano se resume a cuidar da mãe idosa e da própria saúde mental, uma vez que sofre de distúrbios psicológicos que o obrigam a se consultar semanalmente. Sem amigos ou relacionamentos amorosos, a única perspectiva de vida de Arthur é um dia fazer as pessoas felizes.

Os sentimentos que vemos impressos no semblante de Arthur Fleck são de fraqueza e humilhação. Bastaria apenas um dia ruim para que isso se convertesse na face da inconsequência. Mas uma sucessão de infortúnios vão acontecendo, pioradas com a solidão em que o personagem vive. Solitário, porém imaginativo, é na fantasia de um mundo onde é aceito e amado que Arthur controla seus impulsos.

A dificuldade de se manter são dentro de uma cidade que praticamente aboliu a empatia e solidariedade é a maior dualidade do filme. Esqueça a Gotham gótica dos quadrinhos e filmes. Na perspectiva do diretor Todd Phillips, para que se alcançasse maior proximidade com a realidade, foi preciso desnudar todo o filtro noir para dar lugar a um cenário sujo, empobrecido e desvirtuado, similar à Nova York em tempos de colapso econômico.

Isso deixa a abordagem mais sensata. E longe, muito longe, de qualquer coisa feita antes no cinema de super-heróis ou vilões. Basicamente, a produção pega emprestada a gênese do Coringa da HQ “Batman: A Piada Mortal” para criar seu próprio drama humano sem nenhuma proeza sobre-humana. 

Foto: Divulgação

Um riso sem alegria

Para sustentar um enredo que orbita em um único personagem, Joaquin Phoenix encarnou Coringa pensando mais no seu lado humano do que nos clichês de um antagonista bufão e inconsequente representado em épocas passadas. O maior feito de Phoenix é oferecer uma risada que não provém da alegria, mas da dor. O maior defeito é o pouco aproveitamento de sua insanidade em momentos mais intensos, preferindo a tensão em ações mais individuais e triviais.

Só que Phoenix não brilha sozinho. Simultâneo a ele temos a atuação delicada de Frances Conroy como Penny Fleck, mãe do protagonista. Robert De Niro (que estava devendo um bom filme há anos) está bem articulado como Murray Franklin, ídolo televisivo de Arthur e Penny. Zazie Beetz, ainda que tenha chamado atenção nos trailers, lamentavelmente está num papel aquém de uma coadjuvante.

Não podemos pressentir muito sobre Bruce Wayne, algo contrário do que vemos em seu pai, Thomas (Brett Cullen). Ele desperta um sentimento dúbio no público, uma dúvida de se ele é apenas um empresário próspero e exemplar, ou um burocrata insensível que contribuiu para a calamidade social na qual Gotham está afundada. 

Foto: Divulgação

Deixando a fórmula de lado

Desequilíbrio mental, conflito de classes e crueza gráfica não parecem ser ingredientes confiáveis para a receita de um filme de super heróis de sucesso. Mas quando Martin Scorsese deu a notícia de que estava disposto a fazer um filme sobre a história do Coringa, tudo parecia possível. 

O diretor foi parteiro de vários anti heróis do cinema moderno. Ele não continuou na produção, mas passou o bastão para Todd Phillips, conhecido pela franquia “Se Beber Não Case”. As referências de Scorsese estão todas lá. É tentador comparar Arthur Fleck com Travis Bickle, de Taxi Driver. Dentro da personalidade de Todd, o filme caminha para um maior detalhamento de caráter do protagonista. Tanto que Coringa segue uma construção bem gradativa, numa estrutura inversa à conhecida Jornada do Herói. Embora a exposição à violência tenha causado preocupação, ela aqui acontece em momentos bem pontuais. A forma como ela é mostrada, entretanto, dispensa escrúpulos. 

São momentos brutos e sem suavidade estética. É tão ríspido como uma pistolagem de rua e pega o espectador de surpresa pela exposição realista dos atos. Ao longo do filme, a própria relação de Arthur com a violência fica mais confortável na medida em que os conflitos vão aumentando.

Foto: Divulgação

Veredito

Coringa é honesto por trazer uma ótica mais humana dentro do cinema de super heróis. Um humanismo que não faz juízo de valor em relação ao comportamento do protagonista, só deixa o olhar aberto para as condições onde isso se desenvolve. Não apresenta maniqueísmos (ainda bem!), muito menos o verniz de vilania em filmes que, na verdade, são puro entretenimento escapista. Sabe ter seus momentos lúdicos onde reina a austeridade. 

É questionável, após duas horas de filme, a necessidade de focar tanto em ações corriqueiras para que só depois de muito tempo o filme exploda em cólera. Mas, para todos os efeitos, a violência pode ser sentida nas pequenas coisas, e só tendo um mínimo de humanidade para se sentir horrorizado com ela.

Pontos Negativos

  • Ação muito dosada;
  • Pouco aproveitamento de personagens secundários;
  • Potenciais gatilhos para pessoas mental e emocionalmente instáveis.

Pontos Positivos

  • Drama bem elaborado;
  • Cenário acertado com a proposta do filme;
  • Atuação convincente de Joaquin Phoenix;
  • Originalidade de enredo e estética.

Nota: 8,5