Entrevista: Roteiristas de Pacarrete sobre o filme e o audiovisual cearense

31/03/2021 - POSTADO POR EM Conteúdo E Filmes

O cinema cearense está vivo e respirando! Com uma jornada premiada desde sua primeira exibição em festivais no ano de 2019, Pacarrete ganhou o Brasil e tem conquistado muitos corações. Conversamos com Samuel Brasileiro e Natália Maia, roteiristas do longa, em uma entrevista bastante esclarecedora. Confira a seguir!

Entre outros prêmios, Pacarrete se consagrou como o principal nome do 47º Festival de Gramado, incluindo uma vitória na categoria de Melhor Roteiro, e venceu ainda a 11ª edição do FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa nas categorias Melhor Filme e Melhor Atriz.

Samuel e Natália são cearenses e também produziram a série Lana & Carol. Nesta entrevista exclusiva do Roteiro Nerd, eles falam sobre o processo de construção do roteiro e a trajetória do filme, bem como sobre a produção da série e o audiovisual no Ceará. Se liga!

Foto: Saulo Monteiro

Roteiro Nerd: Como vocês chegaram até esse cargo de roteiristas do filme? 

Samuel e Natália: Nós já conhecíamos o Allan Deberton e já estávamos discutindo outros projetos. Mas esses primeiros convites surgiram depois dele assistir a um curta-metragem que o Samuel dirigiu e nós escrevemos juntos. O curta-metragem se chama “Biquini Paraíso” (2015). O convite foi feito em 2016 e ficamos os dois desenvolvendo o roteiro junto do Allan e depois junto do André Araújo também.

RN: Como é o processo criativo de um roteiro como o de Pacarrete? Quais elementos e sensações vocês inseriram na história?

Essa pergunta veio da observação de uma leitora que achou o “clima” do filme diferente, no quesito emocional.

S & N: “Pacarrete” foi um roteiro desafiador de escrever por alguns motivos. Um deles, e talvez o principal, seja a criação da protagonista, a Pacarrete, de quem acompanhamos a jornada. Pacarrete é uma personagem real, uma bailarina que viveu na cidade de Russas e que o Allan conhecia bem, por ter convivido com ela e já ter feito um documentário sobre sua vida. Ao mesmo tempo, estávamos construindo uma personagem ficcional e nos deparamos com uma mulher muito complexa. Pacarrete é múltipla. Suas camadas de personalidade se expressavam de muitas formas e os moradores da cidade a enxergavam também por diferentes prismas. Então, passamos por esse processo de pesquisa e criação para mediar as diversas facetas que existiam dentro e fora dessa mulher para, então, encontrarmos a Pacarrete que existe no filme.

Outro desafio foi descobrir como dramatizar a história de Pacarrete. Uma narrativa clássica deve ter seus recortes e conflitos. Compreendemos que precisaríamos deslocar a Pacarrete de seu tempo e criar uma narrativa que ocorre no tempo diegético do filme. O conflito que ela vive na história nunca aconteceu. Situações que estão nas cenas, diálogos e os personagens tomam emprestado da pesquisa, mas o arco do conflito principal – o desejo de se apresentar na festa de 200 anos – foi criado por nós, no processo de roteiro do filme.

Como nós, Natália e Samuel, não conhecíamos a Pacarrete, começamos a aproximá-la de outras pessoas que tínhamos em nossas vidas para entender um pouco mais sobre a construção emocional da personagem e também compreender como a Pacarrete nos ajudava a entender a forma como nós olhávamos para as pessoas. Também tentamos trazer para o processo as nossas vivências familiares em cidades do interior do Ceará. O roteirista precisa se engajar na própria história. Não adianta a escrita ser somente técnica, pautada apenas nas ferramentas de escrita, embora isso seja também fundamental. Não é uma fórmula exata. É uma junção dos métodos com esse engajamento afetivo que faz com que seja possível se manter na rota de construção da escrita sem esquecer o coração que mobiliza o projeto.

RN: Existe algum diálogo do filme que realmente aconteceu na história da Pacarrete?

S & N: A gente teve um processo de pesquisa no qual recebemos várias histórias de pessoas que moravam em Russas sobre a Pacarrete. Além disso, o próprio Allan já tinha coletado muitas histórias também. Foi importante ainda buscar informações sobre a história de Pacarrete. Fizemos também uma playlist das músicas que Pacarrete escutaria e nos cercamos de elementos visuais que remetessem à personagem. Essas informações serviram de base para a escrita do roteiro.

A trama do filme nunca aconteceu, mas a construção do universo e dos personagens é muito pautada nos relatos daqueles que a conheciam e na própria memória do Allan acerca desses personagens e da cidade. Achamos que vale mais a pena pensar o filme como uma inspiração nos fatos do que no registro de um acontecimento. O filme é uma fabulação de uma personagem real, do seu mundo e de suas referências.

Mas, de fato, a pesquisa sobre a vida da Pacarrete fez a gente entender mais que personagens teríamos e que conflitos ela viveu que poderíamos trazer para o filme. Ela sempre limpar a calçada da frente de casa e expulsar as pessoas que pisavam lá é um fato real de seu cotidiano. Ela ter um berço para o cachorro também. Mas a forma como ela encontra o cachorro, por exemplo, foi uma construção dramática que resolvemos no roteiro.

RN: Quem decidiu inserir um cachorro na história? E por que?

S & N: O cachorro é um personagem real também. Ela tinha esse cachorro, que tinha um berço e a acompanhava nas caminhadas ao redor da praça. Esse é o fato, mas a construção dramática do filme tem outro significado. O cachorro, He-Man, tem no filme a função de reforçar o abandono de Pacarrete.

RN: Qual era a expectativa de vocês com esse projeto?

S & N: A expectativa de todo mundo que estava no projeto era o de fazer o melhor filme possível. Sabíamos que tínhamos uma personagem incrível e que seria interpretada pela Marcélia Cartaxo. Compreendemos a responsabilidade da escrita desse filme. Eu e a Natália já tínhamos experiência com escrita de longa-metragem, porque participamos do Núcleo Criativo da Tardo Filmes aqui do Ceará, mas ainda assim “Pacarrete” foi um processo com outros desafios e caminhos de escrita.

Ver a repercussão do filme em Gramado e, principalmente, a forma carinhosa como o público o recebeu, foi incrível. Notar que algo que escrevemos vem reverberando nas pessoas e também mostrando um outro lado de uma personagem que foi tão estigmatizada em sua cidade é muito forte.

A gente espera que mais gente consiga assistir ao filme e que ele também inspire mais pessoas a escrever seus projetos.

RN: Samuel, eu estudei cinema por 1 ano na Universidade Federal do Ceará (UFC) e lembro de termos estudado seus filmes em aula. Você tem noção de que seu trabalho está presente nesse processo de aprendizagem do cinema cearense? Me diz o que acha disso.

Samuel: Não sabia que trabalhos anteriores meus estavam sendo usados em sala de aula. Fico muito lisonjeado em saber disso! A gente faz os filmes por acreditar nos projetos e depois eles ganham vida própria.

Eu acho fundamental estudar cinema cearense no processo de formação de audiovisual. Nós temos uma produção consolidada e muito diversa. Não adianta querer fazer cinema no Ceará sem conhecer o que tem sido produzido e como os processos de produção são realizados. Eu tive essa experiência também quando entrei no curso de Cinema, sou da primeira turma. A aula inaugural foi com o Karim Aïnouz e logo no primeiro semestre tivemos uma sessão especial de “Estrada para Ythaca” (2010). Conhecemos duas formas diferentes de produzir no Ceará e que estavam se destacando muito. Sinto que essas são minhas influências iniciais, sabe? Quando você começa a entender que é possível fazer cinema na sua cidade.

RN: Quem ainda não assistiu Pacarrete pode ver onde?

S & N: O filme está disponível em alguns streamings, como NET NOW, Youtube, na Apple, no Vivo Play e no Google Movies. É possível alugar e assistir em casa.

Lana & Carol

RN: Como aconteceu a escolha das atrizes para a série? 

S & N: Para o “Lana & Carol“, a gente fez um processo de casting e todo o elenco principal foi selecionado a partir desse processo. Foi muito intenso e incrível. Todo o elenco principal não tinha muita experiência com audiovisual, alguns tiveram a primeira experiência atuando na série. Foi uma aposta que fizemos, pois queríamos que o elenco e os personagens se misturassem um pouco também. Eles trouxeram muito para os personagens. Tivemos um processo de preparação de elenco com a Nataly Rocha, que foi maravilhoso para isso.

RN: O que era mais importante pra vocês durante a produção dessa série?

S & N: A série foi um aprendizado para toda a equipe, porque ela foi a primeira produção nesse formato feita aqui na cidade por uma equipe cearense. Então o mais importante era que a gente conseguisse sair com um produto que todos ficássemos orgulhosos, mas que o processo também fosse criativo. Foi uma produção muito desafiadora, mas somos muito felizes com o resultado da série e por saber onde ela chegou. Para nós era muito importante que a série falasse de Fortaleza, mas que pudesse dialogar com qualquer pessoa.

RN: Quem ainda não conhece a série pode assistir onde? 

S&N: A série está disponível gratuitamente no site do Canais Globo e também pode ser assistida na televisão, na programação do Canal Futura

RN: Existe um episódio sobre o SANA, achamos isso curioso e engraçado. Por que escolheram esse evento?

S & N: Quando criamos a série, queríamos falar sobre diversas experiências da adolescência em Fortaleza. Já não somos mais adolescentes, mas ainda assim queríamos trazer um pouco do que vivemos. Um evento que atravessava todos os criadores da série de alguma maneira era o Sana. Então resolvemos criar um evento que fosse inspirado no evento real. Na série é o InSana. Foi muito divertido criar os personagens para que elas fizessem cosplay e também para construirmos mais a personagem da Virna, que é fã de anime. A ideia do episódio era falar desse universo, que é muito importante para a juventude de Fortaleza. E fazer isso de forma divertida, que fizesse parte da narrativa e também que fosse uma pequena homenagem para quem conhece.

RN: Existem planos para uma continuação? 

S & N: A série foi feita a partir de um edital de TVs Públicas do Governo Federal. Ganhamos em 2016 e filmamos em 2017. Então, não sabemos se vamos conseguir ter uma nova temporada. Mas, se isso acontecer no futuro, vai ser ótimo, porque ainda temos muita história sobre esses personagens para contar.

RN: Por fim, o que vocês esperam do audiovisual cearense num futuro próximo?

S & N: A produção tem crescido muito devido ao aumento de cursos de formação em Cinema. Isso é incrível, porque mostra a pluralidade de temas, formas e processos que existem no nosso estado. Não existe o cinema cearense, mas os cinemas cearenses. Mas, ao mesmo tempo, é necessário que tenhamos acesso a editais e incentivos que assegurem a manutenção dessa produção para que as pessoas consigam continuar produzindo.