Lançamento recente da editora Intrínseca, “Minha Sombria Vanessa” é uma daquelas histórias difíceis de serem ouvidas, mas que são necessárias. Com uma temática polêmica, esse é o corajoso e inspirado romance de estreia da escritora Kate Elizabeth Russell. Confira agora o que achamos da obra.
Atenção, esse livro possui gatilhos para estupro, relações com menores de idade e relacionamento abusivo.
Presente e passado
A narrativa do livro se divide entre o ano de 2000 e o de 2017. Vemos o passado da protagonista Vanessa, quando ela era uma estudante de 15 anos em um colégio interno e seu presente, agora aos 32, onde é funcionária de um luxuoso hotel.
Vanessa está obcecada com a denúncia realizada por meio do facebook de uma garota que ela pouco conhece. Essa mulher acusa o antigo professor de sua escola de tê-la assediado. A nossa personagem sabe quem é esse homem, é o mesmo com quem teve uma relação aos 15 anos e o mesmo que não consegue abandonar desde então.
Entre a adolescência nos corredores de Browick e a fase adulta vivendo sozinha em um pequeno apartamento, “Minha Sombria Vanessa” traz à tona todos os fantasmas que assombram a protagonista e que ela vem mantendo para si durante todos esses anos. Uma mulher que se recusa a se colocar no papel de vítima, mas tampouco pode deixar de perceber a vida conturbada que teve por causa de Jacob Strane. Esta não é uma história de amor.
“Que sorte a minha – disse ele. – Quando eu finalmente encontro minha cara-metade, ela tem quinze anos”.
“Minha Sombria Vanessa”, página 15.
Foto: Divulgação
Escolha uma narrativa
Vanessa Wyes é uma protagonista repleta de camadas. A narração que oscila entre presente e passado nos obriga a montar um quebra-cabeça, devemos observar o início do envolvimento dela como aluna com seu professor de literatura, um homem de 42 anos, e o momento presente, em que ela ainda mantém contato com ele.
A personagem nos faz experimentar uma gama de sentimentos e não é fácil ter empatia com ela. O seu eu do presente parece uma pessoa muito fechada e obcecada, enquanto no passado vemos uma adolescente solitária e iludida. Nenhuma delas nos inspira confiança, mas aos poucos compreendemos suas motivações, afinal, ela é a vítima aqui.
Porém, não é isso que Vanessa escolha ser. Mesmo após anos terem se passado do seu envolvimento com Strane e ela ter noção de que a relação dos dois era permeada de erros, além da clara manipulação por parte dele, Vanessa se recusa a tomar essa narrativa para si. Isso soa como um forte estado de negação, o que lá no fundo, é o tipo de coisa que ela construiu para si para poder sobreviver.
“- Porque se não for uma história de amor, então o que é?
[…]
– É a minha vida – digo. – Isso tem sido a minha vida inteira”.
“Minha Sombria Vanessa”, página 372.
Manipulação
“Minha Sombria Vanessa” mostra o abusador pelos olhos de sua vítima e como ele se utilizou de diversas falácias para exercer sua manipulação sobre ela. Strane se aproximou devagar, testando a receptividade da garota e falando o que seria agradável aos seus ouvidos. O professor se utiliza do claro isolamento da aluna para colocá-la em um patamar acima de suas colegas, dizendo o que ela é madura e que o entende de uma maneira que as outras pessoas não.
Felizmente a autora não romantiza a situação em nenhum momento, o leitor percebe com muita clareza os artifícios que Strane usa para manipular Vanessa. Ele se mostra muito compreensivo até o momento em que quer satisfazer os seus desejos. A cena em que o homem induz uma relação sexual (que sim, é um estupro) com Vanessa pela primeira vez é aterradora, pois você vê o quanto ela está impotente e o quanto se obriga a dizer para si mesma que está tudo bem, só para não destruir a relação que acredita estar construindo.
Agora, sobre a questão da pedofilia do personagem, isso é abordado quando se vê a relação que eles tem e por diversas insinuações sobre outros de seus atos ao longo do livro. Nunca é algo atestado clinicamente, porém é um fato que Strane se envolve sexualmente com uma garota de quinze anos e que assedia outras adolescentes.
Inclusive, Strane dá a Vanessa uma cópia de “Lolita”, que é sobre o envolvimento sexual de um homem que é claramente pedófilo e uma garota de doze anos. A obra é um marco no relacionamento para Vanessa, ela a todo momento compara a si mesma e seu professor com Humbert e Dolores, personagens do livro. Ele se mostra incomodado com a analogia e se recusa a ter atribuído para si esse tipo de comportamento. Porém, pode ser um paralelo entre a protagonista e o fato de não querer ver a si mesma como sobrevivente, ao nomear você dá um peso maior a tudo.
”É o fato de ele ter me dado aquele livro. Agora há um contexto totalmente novo para o que estamos fazendo, uma nova compreensão para o que talvez ele queira comigo. Que conclusão pode ser tirada exceto a mais óbvia? Ele é Humbert, e eu, Dolores.”
“Minha Sombria Vanessa”, página 93.
Foto: Divulgação
Veredito
Mesmo sendo um enredo muito difícil de acompanhar, Kate fez um excelente trabalho de escrita em “Minha Sombria Vanessa”. A trama é consistente e fluida e os personagens principais largamente desenvolvidos, algumas passagens podem ser mais alongadas desnecessariamente, mas nada que prejudique demais o texto. O único motivo para não se fazer uma leitura rápida deste livro é certamente o seu conteúdo indigesto, porém são histórias que merecem ser ouvidas, pois elas acontecem.
Esta é uma obra que abre uma série de questionamentos e que fará seu leitor refletir bastante ao longo das páginas. O posicionamento de Vanessa pode causa confusão e até mesmo certa raiva, mas é importante entender que não existe um único modo de reagir a situações como as quais ela passou, não há um manual e o melhor a se fazer é dar espaço para que a pessoa possa passar pelo processo de cura à sua maneira.
Pontos positivos
- História profunda e tocante;
- Personagens bem desenvolvidos;
- Escrita fluída.
Pontos negativos
- Alguns momentos se alongam mais do que o necessário.
NOTA: 9,5